Paisagememória

31 10 2023

Oi Félix, sou a Tania, uma mulher nascida na capital de São Paulo.

Mesmo sendo “daqui” durante minha vida muitas pessoas me perguntaram se eu era “de  São Paulo mesmo”, eu não entendia o porquê.

Meu pai é pernambucano, minha mãe neta de alemão, minha tataravó índia, enfim, sou essa miscigenação do Brasil, que somos todos um pouco. Mas o reconhecimento dessas multidões que estão em mim, em você e todos nós, até no mais caucasiano dos europeus, até no mais retinto do africanos, nem sempre ocorre, apesar da raça humana desde sempre circular, porque foi nômade por princípio e sobrevivência.

Eu contar sobre quem eu sou pela ancestralidade é importante para te explicar que esse sentimento de ser estrangeira, de não ser daqui, de estar deslocada, me constitui. E eu demorei para aceitar que era isso, que eu era o que viam em mim, não por ser reflexo dessa forma estática, como imagem, mas por me construir também por esses olhares, pelo movimento.

Eu sou essa paisagem. Errática, desviante, digressiva. Mas também fui e sou outras. Essa é a que estou agora, para você.

Ao fechar os olhos e escolher uma memória, eu fui direto para a paisagem e memória que me é mais cara: a paisagem de minha infância, no momento mais duro e mais livre dela: a separação dos meus pais.

E porque não estavam mais juntos, dividiram as filhas nas férias: minha irmã com minha mãe em Ilha Bela, e eu com meu pai no Pernambuco, na zona da Mata. Foi minha primeira viagem até lá, de ônibus comendo farofa com charque, tomando banho de pia na rodoviária e ouvindo a novela pelo rádio do outro passageiro. Ali na cidade minúscula, sem água encanada, sem luz elétrica, berço de nascença do meu pai, eu fui livre, fiquei solta com os primos.

Então uma senhora faleceu, fizeram o velório dentro da casa e no fim do dia, depois do enterro, teve uma procissão. Sob a luz do luar seguimos eu e a pequena multidão até o sítio da minha vó, e lá eles rezaram. Eu lembro do caminho da estrada de terra iluminada pela lua, da mesa cheia de velas e muita gente dentro da sala na penumbra e lembro que naquela noite eu adormeci debaixo daquela mesa e fui acordada com o som da minha vó cuidando das galinhas.

Se me tirassem essa paisagem eu perderia esse elo estrangeiro de mim mesma, me sentiria perdida, porque ali, longe de onde tinha nascido, totalmente sem amarras dos cuidados urbanos que se tem com as crianças, ali eu estava totalmente integrada.

Eu entendo que não pertencemos a um lugar, nós podemos sim, nos deixar atravessar, sem amarras, o fluxo das gentes, das plantas, dos solos e todo esse universo físico, onírico e simbólico. Eu fico pensando, que isso nos permitirá nos re-encantar com o mundo.

Termino com o poema do Mia Couto que sintetiza esse sentimento:

Tudo o que tenho não tem posse:
o rio e suas ocultas fontes,
A nuvem grávida de Novembro,
O desaguar de um rio em tua boca.
Só me pertence o que não abraço.
Eis como eterno me condeno:
Amo o que não tem despedida.

Texto escrito no contexto de uma Oficina proposta pela professora Catharina Pinheiro (FAUUSP), no VI Enanparq (março 2021)


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