SAMBA DO GRANDE AMOR (Chico Buarque)
Tinha cá pra mim
Que agora sim
Eu vivia enfim o grande amor
Mentira
Me atirei assim
De trampolim
Fui até o fim um amador
Passava um verão
A água e pão
Dava o meu quinhão pro grande amor
Mentira
Eu botava a mão
No fogo então
Com meu coração de fiador
Hoje eu tenho apenas uma pedra no meu peito
Exijo respeito, não sou mais um sonhador
Chego a mudar de calçada
Quando aparece uma flor
E dou risada do grande amor
Mentira
Fui muito fiel
Comprei anel
Botei no papel o grande amor
Mentira
Reservei hotel
Sarapatel
E lua-de-mel em Salvador
Fui rezar na Sé
Pra São José
Que eu levava fé no grande amor
Mentira
Fiz promessa até
Pra Oxumaré
De subir a pé o Redentor
Hoje eu tenho apenas uma pedra no meu peito
Exijo respeito, não sou mais um sonhador
Chego a mudar de calçada
Quando aparece uma flor
E dou risada do grande amor
Mentira
A grande mentira é não ser verdadeiro consigo mesmo, mentir para si é turvar a verdade. Mas enfim, o que é afinal verdadeiro, para quem, o quê? Vou ser genérica e usar o jargão genérico que tudo na vida é relativo, antes disso, antecede a relatividade a verdade, e esta é tão subjetiva e imaterial quanto a idéia de tudo ser relativo… O homem é um construtor, são castelinhos infantis tão frágeis quanto belos. A construção da verdade é mais um desses castelinhos, construído e reconstruído várias vezes por cima do existente, usando as mesmas peças para outro fim, com uma função que talvez originalmente não foi pensada. Então, se é construção contínua e por isso dinâmica e variável, como ter certeza do que é verdade ou não?
A verdade antes de tudo é subjetiva, e se uma coisa é verdade para o sujeito, se ela é percebida verdadeiramente, ela existe e é verdade. Vão logo me questionar que assim qualquer mentira ganha os louros sem qualquer risco de descoberta de fraude, se baseando na premissa que foi verdade para algum sujeito. Mas todas as verdades são originárias de uma única matriz, um fundamento sólido, um elemento que compõe todos os outros nessa construção. A primeira verdade-modelo é a verdade relativa à própria existência do sujeito enquanto pensamento.
Existir é verdadeiro, o que se pensa nesta existência ainda que subjetiva traz à realidade existências verdadeiras. E as verdades antagônicas coexistem tanto no sujeito quanto na realidade. A mentira surge não da verdade pura, mas de um ideal subjetivo irreal, incompatível com a existência, que quase poderia se dizer como uma verdade anacrônica. Mentir é encobrir o descompasso temporal do sujeito e sua verdadeira existência.
E o que o grande amor tem com todo esse papo pseudo-filosófico? O grande amor só pode ser vedadeiro, se percebido a tempo, na realidade do sujeito que o vive, que percebe sua existência. Então, se você tem um grande amor, não mude de calçada, não endureça o coração, não vacine-se contra o verdadeiro amor. Isso sim é uma grande mentira.
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