Encanações femininas…

16 06 2009

CICLO DIETÉTICO

Eu sou Fome

Ninguém me come

para o café tem

nada, sem

gosto, sem leite

sem pão, sem azeite

No almoço é bem melhor

assa no forno o nó

que dá na barriga

e o dia é de grande fadiga

Eu sou Fome

Ninguém me come

Depois de uma semana

Estou forte e enorme

Ninguém agora dorme

Me dão atenção sobrehumana

A manhã começa com

desespero por alimento

e termina com fé que o sofrimento

vá embora. Como seria bom!

Eu sou Fome

Ninguém me come

E é assim que eu quero

Assim sou feliz

Pois se me comem, sou mero

passado. Morro antes que eu solicite

Me mata o aprendiz

Ele é esperto, esse Apetite

Aprende rápido, na vula!

Logo será promovido à Gula!

Eu sou Gula

Ninguém me segura

Sou incontrolável

Sou prazerosa

mas cuidado! Tenho uma amiga venenosa

chega sempre atrasada, indomável

A Culpa vem sem convite

acaba de vez com o esforço

determina estado de sítio (no fundo do poço)

Exila o culpado e torturado Apetite

Eu sou Fome

Ninguém me come…





ME LIQUEFAZER

23 03 2009

vapor_cinza

 

Apago todas as luzes e me fecho na varanda. É o princípio da noite cálida, pouco antes da chuva. Uma mulher com guarda-chuva verde, calças pretas e sandálias brancas atravessa a rua apressada. Sento-me na cadeira, me envergonho pela decisão e acho graça ver a mulher voltar com o guarda-chuva fechado e atravessar mais vagarosa, agora que a chuva já cai cadenciada. O movimento na rua é grande, a maioria das pessoas, como a mulher de sandálias brancas, segue na chuva sem grande desespero, sem protejer-se, como se aquela chuva não fosse real. A noite lembra o clima de praia, com a típica chuva que borrifa frescor, mas não molha.

Nunca duvidei do poder de sociabilização da cerveja, do café e do cigarro, como também nunca senti falta usar desses artifícios para tornar-me mais sociável. Para provar isto, acendo meu primeiro cigarro solitária, no anonimato urbano. No primeiro trago já sinto uma ponta de arrependimento, mas é na outra ponta deste pequeno cilindro que toda a minha ansiedade se consome. A noite envolve a brasa, esta fonte de luz rarefeita onde deposito minhas esperanças.

De forma instantânea, os músculos relaxam gradualmente, um a um, com um leve formigamento. O relaxamento é tanto, que tudo se esvai na noite morna e na chuva fresca, como que evaporado antes de chegar ao chão, tenho uma leve tontura e sinto minha cabeça pendendo pesada com o cérebro liquefeito. Aos poucos fico entorpecida, o organismo denuncia a intoxicação da nicotina, ao mesmo tempo que está ávido por ver a brasa reluzir, se extinguindo a cada próximo trago. Vem súbito o desejo por mais um, antes que o primeiro se acabe, num arremedo compulsório, emendando desejos e frustrações, vícios e medos, dissoluções e impulsos.

Embora o organismo e a psíque execrem a necessidade de fumar, o cigarro estabelece íntima relação com o meu eu tão só aliviado por sua existência e companhia efêmera e perecível. O hábito vem quase sem querer, e constato já ter fumado sem perceber mais de meio maço! Estou imbuída de sensações contraditórias, de sentimentos complementares e antitéticos, como acredito estrarmos sempre, personificados na mulher que vi ir e vir de sandálias brancas. Esse conjunto incoerente é velado pelo cigarro e está depositado em cada bituca que despejo no cinzeiro.

Percebo os efeitos colaterais, não nasci para ser fumante, há um embate fisiológico entre a repulsa pelo cigarro e um desejo, uma atração pelo momento de estar apenas comigo. O cigarro é o veículo que possibilita a pausa, um instante de ócio no meio do turbilhão, em que o entrar e sair da fumaça produz maior contato entre o corpo e a existência etérea.

A respiração é orquestrada pelo pulsar da brasa que a cada novo trago se aproxima, aquece e reconforta, e isto indica também sua extinção. A inspiração é um espasmo, um momento sincopado pela fumaça e todos os males, de dentro do cigarro e do interior da mente e da alma adentrando no meu corpo, enquanto a expiração é o alívio, o momento de desabafo pela baforada que dilui a tensão e externaliza a angústia

O calor aproxima-se dos dedos, numa carícia provocante e perigosa. Com uma gana infantil termino em poucos minutos, o que poderia levar uma eternidade. A luz amarela da rua tinge a água da garoa de dourado, estou toda do avesso e para fora. O amargor da garganta adocica a boca ressequida, uma sensação torpe e idiota me invade e sinto que me liquefiz em cinzas.