Me falta tempo. Sobram idéias.
Escrevi esta resenha depois da diretora do filme de “A via láctea”, Lina Chamie, ter apresentado o making of e ter nos contado um pouco mais sobre o filme, sua produção e roteiro. Fui surpreendida, esperava bem menos de um filme com a sinopse apresentada.
Lina Chamie nos defronta com peculiaridades lingüísticas em seu modo de fazer cinema. Isso ficou claro com a apresentação do making of do filme – outrora em cartaz nos cinemas – “A Via-Láctea”. Uma das peculiaridades está justamente em como o filme foi propriamente feito: as filmagens externas foram em quase que sua totalidade produzidas no cotidiano real da cidade. Não há cenário, a cidade participa verdadeiramente do filme, o que dá certo caráter “documental” a ele, contudo, é importante ressaltar que não se trata de um documentário, mas existe esta tensão entre a denúncia documental dos quadros reais da cidade com a história e personagens fictícios que ocupam e vivem no espaço, na metrópole caótica e que nos é comum, isso nos aproxima do filme, que todavia causa estranhamento com sua linguagem fragmentária e caótica. O foco dessas filmagens externas está sempre no tráfego, no trânsito engarrafado, por todos nós muito bem conhecido. Outra característica singular é a manipulação das imagens. Lina Chamie afirma que seu filme é atípico, quanto ao principal meio cinematográfico para se contar uma história, pois em A Via Láctea sua qualidade é imprecisa e fragmentária, porém é justamente através do caos, fortalecido pelo caos urbano, e da imprecisão, que o espectador é levado, à deriva, pela narrativa quase que cíclica e logo, na minha opinião, a diretora faz uso sim da manipulação, dos cortes e colagens para contar sua história. É claro que não conta de maneira tradicional e linear, mas se pode tirar conclusões a respeito do enredo.
A exibição do filme trouxe além de surpresas narrativas da história em sim, como também revelou outra riqueza não apresentada na sua complexidade no making of. São elementos (des-) estruturadores: a imagem, elemento natural do cinema, mas que ganha dinâmica pela repetição de frames, fragmentados do curso principal da história, que é sempre interrompida e a reprodução de cenas com mudanças de ângulos e falas; a sonoridade do filme, onde além da trilha sonora se introduz poemas declamados, que se repetem e se confundem; a lógica narrativa psíquica, ou seja, estamos no filme quase que inteiro imbuídos nas digressões labirínticas de Heitor (personagem principal), isto atrelado à não-linearidade e repetição dos acontecimentos confundem o espectador e constroem uma realidade paralela, virtual da própria história; a narrativa usa essa lógica e esta se sub-divide em camadas: o passado e sua memória (que pode ser transfigurada), o futuro e o seu desejo, que por si só não se atém à dados de realidade no geral e o presente que não propriamente é o que se está vivenciando no momento mas é o momento mais real presente na psique do personagem. Essas camadas se entrecruzam e se sobrepõem, não há uma cronologia temporal dos fatos, aliás nem os fatos têm uma ordem, por isso a possibilidade de sua repetição. Cada nova seqüência das mesmas cenas, com alterações substanciais, traz um novo sentido à ela. O filme trabalha com sentimentos “fortes”: o amor/paixão, o ciúmes, o medo, a perda e a morte. Nas palavras de Chamie, trabalha o sentimento e não o concreto, por isso se fragmenta, é etéreo. Mas também vejo que isso se espraia para os sentidos, ocorrência dada pelos elementos acima apresentados. Tudo serve de amálgama para construção do caos (ou seria a desconstrução da ordem?).
O elemento que é o cerne no cinema, a imagem, passa por um processo de sua desconstrução em A Via Láctea. A cidade aqui entra não apenas como pano de fundo, mas é ela que acelera e desacelera o ritmo do filme. O caos no fim é o que norteia o filme, o caos interior de Heitor se relaciona com o caos da cidade, ambos se confundem em certos momentos. A origem desse caos está na perda, no fim de um relacionamento amoroso que desencadeia a constatação de uma perda maior, do controle sobre a vida. Aqui cabe o paralelo com o caos urbano, não somos capazes de controlar e administrar nossa vida, pois dependemos da cidade, que empata, congestiona, impede. No entanto é nessa mesma cidade que se promove os encontros, que se vive o amor.
Ao meu ver, este filme foi feliz, usou recursos de recortes e repetições já conhecidos, como no filme Corra, Lola, corra, mas inova por utilizá-lo com modificações sutis. O resultado é um filme que conta uma história de amor, casual, comum, mas que intenciona narrar outra, e isso é proposital, pois é uma metáfora lingüística, ao passo que a (des-) construção transtorna o espectador que não espera pelo fim. Esse sentimento é forte, e não precisa de enredo, a perda se entende pelo contexto e se sente pelo fato, assim como o amor.
“O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato
O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço
O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome
O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas
O amor comeu metros e metros de gravatas
O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus
O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos
O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão
Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte”
(“Dos três mal-amados”, João Cabral de Melo Neto)
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