SATURNO NOS DEVORA

29 04 2011

Sabe aquele armário cheio de quinquilharias? Vejo que muito do que carregamos uma vida toda ou grande parte dela é parecido com ele: não nos livramos das coisas dele nem pelo valor, nem pela utilidade, mas pelo valor simbólico e significado das lembranças que depositamos nelas. Se num momento de escassez, de urgência, de calamidade, nos víssemos compelidos a salvar apenas o que nos importa, nos daríamos conta do pouco que nos preenche a alma: um filho, um bichinho, um livro, uma fotografia, talvez um brinquedo guardado da infância e a roupa do corpo.

Antes de o homem ser sedentário, quando a agricultura ainda era rudimentar a ponto de não suprir as necessidades de uma tribo por muito tempo, as pessoas acumulavam menos coisas e deviam por isso também esquecer-se de mais fatos de suas vidas, e viviam menos também. De tempos em tempos uma comunidade inteira saía de mudança: numa caravana de animais de carga e balaios deviam caber vestimentas, remédios, artefatos, utensílios domésticos, pedras para o fogo, comida e talvez sementes. Não cabia mais do que isso. Imagina, se hoje em dia um pequeno bairro inteiro resolve se mudar? Seriam algumas centenas de milhares de caminhões.

O que se levava de mais precioso nessas caravanas não se encontrava em balaios. Os mitos, as lendas que os mais velhos cultivavam eram sua maior riqueza, eram o que mantinha aquela comunidade aglutinada nas idas e vindas cíclicas em um vasto território. São as histórias e memórias de um grupo que fazem dele essencialmente um grupo. Mas elas só valem alguma coisa quando pertencem a mais de um ser: cultivar uma lembrança num vácuo é como ópera de banheiro. Só fazemos para passar o tempo. Agora compartilhar lembranças isso constrói (ou destrói) relações, famílias, tradições, costumes, culturas, cidades, regiões, nações!

Mas veja que lembrança a Alemanha e os judeus compartilham, veja a lembrança que israelenses e palestinos compartilham, recorde-se das lembranças que os nossos colonos compartilham com nossos índios e afro-descendentes. E por que não se lembrar das lembranças que o mar compartilha com a Ásia e nós brasileiros compartilhamos com nossos rios? De fato é difícil saber se é bom ou ruim lembrar ou esquecer. O mais provável é que devemos esquecer o que não edifica o nosso ser relacionado aos outros e ao meio do qual dependemos (vulgo, natureza, que caiu no jargão!).

E o que edifica? Tragédias, violências, lutas pacificadoras, homens e mulheres que movimentam multidões em prol de causas coletivas e emancipadoras, movimentos culturais, movimentos políticos e trabalhistas, grandes obras de literatura, grandes obras de arte, monumentos, inovações tecnológicas, invenções médicas e da saúde, métodos educacionais revolucionários, métodos agrícolas, estruturas industriais… Não tem fim, o homem é uma máquina de criar e elaborar formas de encher seu armário de quinquilharias e hoje não damos um passo se a energia faltar, se o petróleo acabar, se o álcool e a gasolina subirem.

Vivemos ainda hoje a maldição de Adão e Eva ou o pacto fáustico, chamem como quiserem. O fato de hoje determos tecnologia e conhecimento não nos faz uma espécie evoluída. Temos capacidade de explodir o planeta apertando um botão, mas não somos capazes de reverter o processo que aceleramos. Não possuímos tecnologia para reaver jazidas de manganês, poços de petróleo, não produzimos isso em laboratório, não produzimos sequer nosso alimento sem depender minimamente do solo (e ainda bem!). As musas, de Hesíodo, muito antes de Cristo recitaram: “Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só, sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações”. Sábias e proféticas palavras.

Saturno nos devora e sentimos cócegas.